Destaque da cidade

Como uma bioeconomia urbana pode promover ecossistemas saudáveis e estimular a prosperidade econômica sustentável

Em Belém, no Brasil, e em outras cidades da América Latina, esse conceito - que enfatiza a circularidade, os recursos renováveis e o desenvolvimento de infraestrutura verde - já está criando raízes e remodelando as economias locais.

Aproximação da ilha Combu

As margens da Ilha do Combu / Imagem: Thiago Solyno Fotografia

Partindo da cidade amazônica de Belém, Brasil, em uma lancha rápida, leva-se cerca de 10 minutos para chegar às margens da Ilha do Combu. À medida que a linha do horizonte se distancia, o ambiente verde e exuberante da ilha se torna visível, e o tempo parece ficar mais lento. Ao longo das margens da Ilha do Combu, ribeirinhos - os habitantes tradicionais da região do Rio Amazonas - navegam pelas águas em seus próprios barcos, cortando a densa vegetação que margeia a ilha. Durante séculos, os moradores da Ilha do Combu e da região circundante viveram em harmonia com a terra: pescando nas águas e colhendo produtos amazônicos como cacau, açaí e cupuaçu. 

Açaí na Saldosa Maloca
Demonstração de como o açaí é processado na Saldosa Maloca / Imagem: Thiago Solyno Fotografia

Agora, a generosidade da ilha se tornou seu motor econômico. Logo no interior das docas está o restaurante Saldosa Maloca que, desde sua fundação em 1982, estimulou a transformação da ilha em um destino gastronômico e um centro de inovação. Fundado para mostrar a diversidade e a delicadeza dos recursos naturais da ilha, o Saldosa Maloca está mostrando como a consideração pelos ecossistemas naturais e pelo que eles produzem pode criar a espinha dorsal de um empreendimento próspero e sustentável. "Quarenta e dois anos atrás, meus pais fundaram este restaurante", disse Prazeres Dos Santos, proprietário do Saldosa Maloca, ao site UrbanShift. "Como somos moradores da ilha, com toda a nossa família vivendo aqui, estamos muito preocupados com questões de sustentabilidade." Prazeres dos Santos descreveu como o fato de viver tão perto dos recursos que sustentam o restaurante influenciou a abordagem de sua família. "Em uma ilha, é preciso pensar de forma circular; tudo é reutilizado aqui. Por exemplo, desenvolvemos um biodigestor que produz biogás a partir dos resíduos do restaurante, como a composição de peixe, frango, etc., que é usado na cozinha para fazer a comida que servimos no restaurante. É como um círculo".

Perto dali, na Ilha, a Filha do Combu adota uma abordagem igualmente cuidadosa na produção de seu chocolate, que chamou a atenção de vários chefs brasileiros renomados. Desde 2006, a fábrica de chocolate da árvore à barra colhe as vagens de cacau e as transforma em produtos de chocolate orgânico, empregando métodos tradicionais de colheita e processamento das sementes. Ao manter toda a produção local e ser proprietária de toda a cadeia de produção, desde a colheita até as vendas, a Filha do Combu pode garantir que seus lucros permaneçam locais e beneficiem diretamente os trabalhadores e a comunidade em geral.

Amostra de chocolate da Filha do Combu
Provando o chocolate da Filha do Combu / Imagem: Thiago Solyno Fotografia

A Saldosa Maloca e a Filha do Combu são apenas dois exemplos de empresas locais na região amazônica que defendem uma mudança de mentalidade em nosso atual sistema de produção - um sistema que desconecta as pessoas da natureza, criando um estranho paradoxo em um dos hotspots de biodiversidade do mundo. Durante o recente Fórum UrbanShift da América Latina, realizado em Belém e focado em estratégias para desenvolver e financiar abordagens mais sustentáveis para a vida urbana, os participantes puderam visitar a Ilha do Combu e ver como a visão de uma economia urbana sintonizada com os ciclos e recursos naturais pode se tornar uma realidade próspera e vibrante.

A necessidade de transformação

A Amazônia brasileira ofereceu um contexto crucial para as discussões e workshops que ocorreram durante o Fórum UrbanShift . Nessa região, as pressões duplas da urbanização e da degradação do ecossistema são palpáveis. Recentemente, a urbanização se acelerou na região: 75% de todos os residentes e 40% da população indígena vivem agora em cidades e relatam uma qualidade de vida inferior do que os residentes de áreas urbanas no restante do Brasil. O que impulsiona essa mudança para as cidades na Amazônia é a disseminação de práticas de agricultura, pecuária e mineração com uso intensivo de recursos, que estão corroendo o ecossistema natural e quase nenhum benefício para a população local. Embora essa região incrivelmente biodiversa desempenhe um papel fundamental na formação do clima e no abastecimento de nossos sistemas globais de alimentos e medicamentos, nossa relação com a Amazônia e tudo o que ela oferece foi, por muito tempo, construída em torno da extração. Os sistemas globais exploram seus recursos e desconsideram as necessidades de seus residentes, que estão lutando contra desigualdades endêmicas e a falta de acesso a serviços básicos - e o delicado equilíbrio do ecossistema.

"Fala-se sobre a economia e todos os benefícios, mas é preciso olhar de fato para quem produz essa economia - o aspecto focado nas pessoas", disse Dos Santos. "O governo precisa olhar mais para os atores locais da economia. Fazemos parte da condução da economia, mas não temos nem mesmo água potável na ilha." 

A produção tradicional relacionada à natureza, acrescentou José Mattos, chefe da seção brasileira da ANDE, "não beneficia diretamente as comunidades locais". É preciso haver mais reconhecimento das pessoas que trabalham diretamente com os ecossistemas naturais, disse ele, e a necessidade crítica de sustentar e regenerar esses sistemas.

Tendo Belém e toda a região amazônica como pano de fundo, o Fórum UrbanShift abordou a necessidade de reorientar os ecossistemas vitais e seus moradores para a economia, além de estratégias para reimaginar nossos sistemas econômicos para apoiar a saúde dos ecossistemas e o bem-estar dos moradores. 

Crescimento de uma bioeconomia urbana

Como as cidades podem trabalhar coletivamente para precipitar essa mudança? O evento C40 Cities- liderado por Centro de Negócios da Cidade, realizado durante o Fórum UrbanShift da América Latina, apresentou aos participantes o conceito de uma bioeconomia urbanauma estrutura de mudança de paradigma que reconhece a interdependência dos ecossistemas, das pessoas e do clima. Em seu cerne, a ideia de uma bioeconomia representa um afastamento dos modelos tradicionais de produção exploratória - ou do sistema linear de pegar, fazer e desperdiçar - em direção a uma abordagem mais sustentável e circular. Ela se baseia no aproveitamento de recursos biológicos renováveis, na valorização de resíduos biológicos e na promoção de infraestrutura verde. Em regiões de biodiversidade como a Amazôniaa transição para um modelo de bioeconomia deve priorizar a preservação da biodiversidade, respeitando o conhecimento local tradicional e garantindo a distribuição equitativa dos benefícios econômicos. As empresas de bioeconomia geralmente se concentram na utilização de recursos renováveis e na adoção de princípios de economia circular. Isso pode levar à redução do consumo de recursos, à geração de resíduos e à diminuição do impacto ambiental nas áreas urbanas. Ao promover a eficiência dos recursos, as empresas de bioeconomia contribuem para a sustentabilidade das cidades, minimizando sua pegada ecológica.

painel durante o centro de negócios da cidade
Painelistas analisam o potencial de uma bioeconomia urbana durante o Fórum UrbanShift da América Latina / Imagem: Thiago Solyno Fotografia

Durante o Centro de Negócios da Cidade, o apelo dos líderes dos setores público e privado para reimaginar nossos sistemas em torno da ideia de uma bioeconomia foi feito em alto e bom som. "Nas cidades, tudo o que recebemos está pronto, e tendemos a ter amnésia da biodiversidade", disse Fernanda Stefani, CEO da 100% Amazônia, uma empresa B Corp que transforma ingredientes renováveis da região em produtos exclusivos. "Há uma oportunidade de conectar melhor a floresta e a cidade para desenvolver uma economia urbano-rural mais integrada. A floresta e as cidades podem estar conectadas - na verdade, elas precisam estar, pois dependem uma da outra para sobreviver." 

O papel dos setores público e privado

Para transformar o conceito de bioeconomia de uma ideia em uma parte essencial da economia local, as cidades e as empresas têm um papel fundamental a desempenhar. Em Belém - parte da rede UrbanShift apoiada pela Global Environment Facility no Brasil - o potencial das cidades para promover e apoiar uma bioeconomia já está se tornando visível. Basta dar um passeio pela Estação das Docas - um distrito industrial reimaginado ao longo da orla da cidade que agora abriga vários restaurantes e atrações culturais. Um dos pontos de destaque é a Cairu, a sorveteria mais popular da cidade, que oferece uma grande e exclusiva variedade de sabores de sorvete específicos da região - com muitos ingredientes provenientes diretamente da Ilha do Combu. Esse é um pequeno exemplo, mas uma ilustração poderosa do que significa poder experimentar a biodiversidade local em uma cidade. É específico, circular e tangível. 

cairu
Cairu, que serve sorvetes específicos da região em Belém / Imagem: Thiago Solyno Fotografia

Em uma escala mais ampla, Belém está se estabelecendo como um modelo de inovação e bioeconomia para o resto do Brasil. A cidade está se tornando um catalisador de políticas públicas voltadas para a requalificação territorial, o desenvolvimento econômico e social e o fortalecimento das cadeias produtivas locais para a biodiversidade, a inovação e a economia criativa. O recente lançamento do Distrito de Inovação e Bioeconomia de Belém (Distrito de Inovação e Bioeconomia de Belém) com o apoio da WRI Brasil ilustra como as cidades podem criar condições favoráveis à inovação, à pesquisa, ao intercâmbio cultural e ao desenvolvimento territorial. Ao colaborar com cooperativas, associações culturais, startups e empresas de pequeno e médio porte, esse novo distrito de bioeconomia promoverá a comercialização sustentável de produtos renováveis e apoiará a pesquisa e o desenvolvimento de novas abordagens criativas. Em breve, ele também oferecerá espaços de coworking, cursos de treinamento em empreendedorismo, bolsas de pesquisa e apoio à incubação de empresas para empresas locais que desejam entrar no mercado.

Embora as cidades possam definir as estruturas políticas e as condições propícias para uma bioeconomia urbana, as empresas também devem trabalhar para desenvolver seus modelos de modo a centralizar a saúde e o bem-estar dos ecossistemas e dos residentes. Centralizar a diversidade atraente dos recursos naturais é essencial, mas também é preciso trabalhar de forma consciente dos limites dos ecossistemas saudáveis. Identificar recursos renováveis, compreender e respeitar os ciclos de vida do ecossistema e reaproveitar subprodutos e resíduos pode mudar os modelos de negócios para uma maior circularidade e sustentabilidade. "As empresas precisam entender seu papel na ação e no apoio ao desenvolvimento sustentável a partir de seus modelos de negócios, ao mesmo tempo em que asseguram as especificidades de suas realidades e regiões", disse Raoni Silva, Gerente de Cadeia de Suprimentos e Biodiversidade da Natura & Co. "A conexão das pessoas com a floresta é forte, e precisamos garantir que essa bioeconomia seja desenvolvida. A demanda por esses produtos existe."

A ideia de uma bioeconomia urbana tem um enorme potencial para ajustar a relação entre a produção econômica e os ecossistemas naturais. Ao colocar a natureza - e as pessoas que dependem dela e a administram de forma sustentável há séculos - no centro dos negócios, o conceito de bioeconomia pode liberar o potencial econômico e apoiar a prosperidade coletiva das comunidades e do planeta como um todo. É inspirador ver que esse conceito já está criando raízes em Belém e em todo o continente. Quito oferece outro exemplo: Como descreveu Mónica Reinoso Paredes, Diretora Executiva do Fundo Ambiental de Quito descreveu, a cidade está implementando uma Portaria Azul-Verde para proteger e restaurar áreas naturais juntamente com o estabelecimento de um mecanismo de financiamento para alianças público-privadas em torno de soluções baseadas na natureza que poderiam estabelecer a base para uma bioeconomia forte. Outras cidades do mundo podem se basear nesses modelos para estimular a implementação de práticas circulares que priorizem a eficiência dos recursos, desenvolvam esquemas de reciclagem de recursos e melhorem a gestão de resíduos, ao mesmo tempo em que promovem comunidades resilientes por meio de iniciativas e políticas que apoiam empreendedores locais e uma cultura de inovação e conservação da biodiversidade. Ao apoiar iniciativas e empreendedores locais e promover a colaboração com o setor privado, as cidades podem liderar o caminho para um futuro mais sustentável e equitativo.

Para obter mais detalhes sobre como o conceito de bioeconomia está se desenvolvendo na Amazônia, explore a pesquisa do WRIsobre o assunto: A Bioeconomia no Brasil (wri.org)

A bioeconomia apresenta uma nova fronteira de pensamento econômico, e é essencial que façamos isso direito - não apenas para a Amazônia, mas para o mundo.

ilha de combu
Ilha do Combu / Imagem: Thiago Solyno Fotografia